quinta-feira, 10 de abril de 2008

A escola. A flor. A flor. A escola...


A escola. A flor. A flor. A escola... Tudo ia muito bem quando Godofredo entrou
na minha aula. Pediu licença e foi falar com D. Cecília Paim. Só sei que ele apontou a flor no copo. Depois saiu. Ela olhou para mim com tristeza.
Quando terminou a aula, me chamou.
— Quero falar uma coisa com você, Zezé. Espere um pouco.
Ficou arrumando a bolsa que não acabava mais. Se via que não estava com
vontade nenhuma de me falar e procurava a coragem entre as coisas. Afinal se decidiu.
— Godofredo me contou uma coisa muito feia de você, Zezé. É verdade?
Balancei a cabeça afirmativamente.
— Da flor? É, sim, senhora.
— Como é que você faz?
— Levanto mais cedo e passo no jardim da casa do Serginho. Quando o portão
está só encostado, eu entro depressa e roubo uma flor. Mas lá tem tanta que nem faz falta.
— Sim. Mas isso não é direito. Você não deve fazer mais isso. Isso não é um
roubo, mas já é um furtinho.
— Não é não, D. Cecília — O mundo não é de Deus? Tudo que tem no mundo não
é de Deus? Então as flores são de Deus também...
Ela ficou espantada com a minha lógica.
— Só assim que eu podia, professora. Lá em casa não tem jardim. Flor custa
dinheiro... E eu não queria que a mesa da senhora ficasse sempre de copo vazio.
Ela engoliu em seco.
— De vez em quando a senhora não me dá dinheiro para comprar um sonho
recheado, não dá?...
— Poderia lhe dar todos os dias. Mas você some...
— Eu não podia aceitar todos os dias...
— Por quê?
— Porque tem outros meninos pobres que também não trazem merenda.
Ela tirou o lenço da bolsa e passou disfarçadamente nos olhos.
— A senhora não vê a Corujinha?
— Quem é a Corujinha?
— Aquela pretinha do meu tamanho que a mãe enrola o cabelo dela em coquinhos
e amarra com cordão.
— Sei. A Dorotília.
— É, sim, senhora. A Dorotília é mais pobre do que eu. E as outras meninas não
gostam de brincar com ela porque é pretinha e pobre demais. Então ela fica no canto
sempre. Eu divido o sonho que a senhora me dá, com ela.
Dessa vez ela ficou com o lenço parado no nariz muito tempo.
— A senhora de vez em quando, em vez de dar para mim, podia dar para ela. A
mãe dela lava roupa e tem onze filhos. Todos pequenos ainda. Dindinha, minha avó, todo sábado dá um pouco de feijão e de arroz para ajudar eles. E eu divido o meu sonho porque Mamãe ensinou que a gente deve dividir a pobreza da gente com quem é ainda mais pobre.
As lágrimas estavam descendo.
— Eu não queria fazer a senhora chorar. Eu prometo que não roubo mais flores e
vou ser cada vez mais um aluno aplicado.
— Não é isso, Zezé. Venha cá. Pegou as minhas mãos entre as dela.
— Você vai prometer uma coisa, porque você tem um coração maravilhoso, Zezé.
— Eu prometo, mas não quero enganar a senhora. Eu não tenho um coração
maravilhoso. A senhora diz isso porque não me conhece em casa.
— Não tem importância. Pra mim você tem. De agora em diante não quero que
você me traga mais flores. Só se você ganhar alguma. Você promete?
— Prometo, sim senhora. E o copo? Vai ficar sempre vazio?
— Nunca esse copo vai ficar vazio. Quando eu olhar para ele vou sempre enxergar
a flor mais linda do mundo. E vou pensar: quem me deu essa flor foi o meu melhor aluno.
Está bem?
Agora ela ria. Soltou minhas mãos e falou com doçura.
— Agora pode ir, coração de ouro...

José Mauro de Vasconcelos
" O Meu Pé de Laranja Lima"

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